sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A Máquina Madonna


Quando Madonna sai de palco, esgotados os últimos acordes de Holiday, uma despedida à altura que não dá margens para encores, já vimos tudo: circo, flamengo, sapateado, uma exibição de um skater, um tocador de gaita-de-foles a fazer a introdução de Intro the Groove, uma versão simples de Imagine, velho hino de John Lennon, um beijo a George W. Bush a Saddam Hussein (nos ecrãs de vídeo e entregue a sósias, bem entendido). Mais um contínuo deslumbramento em que coreografia rima sempre com tecnologia. Acaba-se, posso garanti-lo de boca aberta, depois de duas dúzias de cantigas e/ ou declarações de princípios. Passaram exactamente 110 minutos e o público que esgota a Manchester Evening News Arena, neste espectáculo de estreia europeia da Re_invention World Tour, delirou. Penso, com a certeza de quem conhece os portugueses, que a euforia lusitana, à solta no lisboeta pavilhão Atlântico, nos próximos dias 13 e 14 de Setembro, vai arrasar a dos Ingleses. Mesmo que não percebam que, com três ecrãs XL só para projectar imagens, números extractos de clips (que nunca são os que originalmente sublinhavam as canções reencontradas), palavras escolhidas a dedo, guardando mais dois para reproduzir em directo o que se passa no palco, o primeiro capítulo é assinado por Esther, a madonna embrenhada na religião, em leitura do bíblico Livro das Revelações.
A última fase de The Beast Within é “I am coming soon” e Madonna já está ali, ginasticada, solta, compenetrada, a destroçar quaisquer resistências quando ataca Vogue. Faltam dois dias para completar 46 anos (foi a 16 de Agosto que os cumpriu), mas quem falar de quarentona merece a imediata quarentena. Há trapézios em palco, acelera-se o ritmo das imagens de apoio, multiplicam-se os pontos de atenção. E já não há um corpo sentado nem uma alma que não procure descobrir onde há-de fixar-se.

Amplificação sonora

A amplificação sonora está toda suspensa, mesmo adiante e acima do palco está uma estrutura em V que faz pensar no luxo de um rack de luzes.
É um enorme engano. E excelente como se verá. Em Nobody Knows me, as projecções de fundo fazem lembrar as sequências numéricas de Matrix. Os músicos são vistos pela primeira vez e, em boa verdade, não ficarão expostos em conjunto por muito mais ocasiões.
Até que Madonna desaparece, para a primeira troca de roupa, o que não impede Frozen de ir soando, incólume, como se estivesse num show multimédia sem artista. De repente, é o delírio: a tal estrutura suspensa desce sobre o público, fica apoiada num poste, como se fosse uma ponte lacustre em que a água é substituída pelos esfuziantes espectadores.

O palco encheu-se de receptores de televisão e há uma perturbadora contagem decrescente num dos grandes ecrãs. Madonna está fardada para a guerra, mais patente do que latente em American Life. Passeia pela “ponte”, dança e canta dois metros acima das cabeças dos espectadores. American Life é esmagadora e acaba com um simbólico beijo de George W. Bush a Saddam Hussein, num dos ecrãs da fantasia.
Mas Madonna não parou: já está lançada numa versão demolidora de Express Yourself, seguida a plenos pulmões por um coro de muitos melhores. No fim de Burning Up, canção velhinha que optou por recordar, esboça o primeiro sorriso e desmente o seu próprio veto ao vernáculo: “Hello Manchester. It’s fucking hot in here.” Interpela os que já se renderam à cadência avassaladora do espectáculo, explicando que a noite segue para outra canção antiga e, farsante pede que a ajudem a lembrar-se das palavras. É Material Girl.

 Voltar a ficar fora

Voltar a ficar fora de cena enquanto se ouve Hollywood, sublinhada com uma montagem visual baseada no tarô. Há números circenses, com fogo vivo, em palco. Há sapateado. Há vinda não se sabe de onde, uma daquelas pistas em U que depressa se estende e vai ser utilizada por um infalível praticante de skate. As luzes de cabarés saúdam a chegada de Hanky Panky, em boa hora recuperada para esta tournée que é a mãe de todos os sumários.

A cadência baixa ligeiramente em Deeper and Deeper: madonna, já vestida com as stars and stripes da bandeira do seu país, começa a cantar sentada. Depois, passa algum tempo até que um inovador arranjo inicial permite perceber que já estamos com Die Another Day, em que a protagonista gastará uma porção do seu tempo numa plataforma que se eleva do lado direito do palco e que a deixa onde merece: nos píncaros.

A cadeira eléctrica do vídeo de Die Another Day serve para ela cantar The Lament, a canção derradeira de Evita.

Quase não se dá por isso, mas Madonna já foi outra vez aos bastidores: está elegante, toda de preto, guitarra acústica em punho quando se ouvem Bedtime Story, Nothing Falls, aqui com a musculada criatura sozinha em palco, e Don’t Tell Me. Novo episódio de deslumbramento visual, com o nevoeiro de Londres, o Big Ben e outras escalas reconhecíveis, a enquadrar uma versão devastadora de Like a Prayer em que, por duas vezes, há um complemento inesperado: o familiar arranjo de cordas dos Verve para Bittersweet Symphony.
É, talvez, o clímax do espectáculo.

Em Mother and Father, está lá atrás a imagem da mãe de Madonna. “Esta canção foi escrita há 35 anos. Podia ter sido hoje.” – Imagine, de Lennon, cumpre a função. Mas já está tudo aos pulos com um tocador de gaita-de-foles que introduz Into The Groove

Voltámos à discoteca, Madonna já vai na quinta passagem do seu guarda-roupa, exibe uma T-shirt que diz “brits do it better” (cá, aposto, serão os “portuguese”…) e ouve-se Papa Don’t Preach, Crazy For You é dedicada aos fãs de sempre. Music tem um Dj em palco, a trabalhar a preceito, com surpresa no fim. Holiday é a síntese perfeita, como novo passeio sobre o público. Difícil, mesmo,no final, é baixar o ritmo cardíaco: o KO técnico foi cumprido.


Fonte: Revista Sábado / João Gobern, em Manchester
Fotos da Revista

Carlos Coelho

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